Distrito de Ouro Preto vira vila viking por um fim de semana
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Minas Gerais é repleta de montanhas e belezas naturais invejáveis. Existem lugares, inclusive, em que é possível imaginar cenas de filme só de bater o olho. Essa fantasia é levada a sério em Santa Rita, distrito de Ouro Preto. O coletivo “Prosa Cortante" recebe anualmente pessoas do Brasil inteiro para um final de semana medieval, repleto de machados, lutas, comida, bebida, roupas a caráter e rituais vikings.
Do dia 7 a 9 de julho, Santa Rita se tornou uma vila viking, com pessoas de vários lugares do mundo. O evento já acontece há sete anos e a iniciativa, que começou em um ateliê com 15 pessoas que se reúnem desde 2014, cresce a cada ano.
Marco Antônio Amato, mais conhecido como Marquito, é o idealizador e organizador do evento medieval de Ouro Preto. Carioca, ele conta que era assessor de imprensa no Rio de Janeiro, quando “chutou o balde” e veio para Minas Gerais, que diz amar. São 15 anos morando em Santa Rita. No seu ateliê, ele treina pessoas para forjaria. Segundo ele, esta é uma arte que vem se perdendo.
“Daí que nasceu o Prosa Cortante, uma forma de troca de informação entre os ferreiros e cuteleiros”.
Segundo ele, a ideia da feira medieval surgiu após uma viagem a Toledo, na Espanha, principal polo de forjaria no mundo. No local, percebeu que era possível fazer igual em Minas Gerais. Neste fim de semana, aconteceu a quinta edição do evento.
“O Prosa Cortante começou no meu ateliê, lá no Centro. Primeiro ano umas 15 pessoas, depois umas 50. O segundo encontro foi quando teve o acidente de Mariana. Depois foi crescendo. Nessa, a gente foi para Toledo, na Espanha, vimos uma feira medieval e pensamos ‘vamos botar essa estética lá, que é tudo ao mesmo tempo que você vê aqui agora’. Essa é a ideia, só artesãos. E aí que nasceu o Medieval Ouro Preto.”
A forjaria remonta até a era pré-medieval. Desde os fenícios, romanos. É uma curtição para quem gosta da estética medieval, começa no século V, com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e termina no século XV, com a tomada de Constantinopla pelo Império Otomano, em 1453.
“A gente se comunica no Brasil inteiro, porque forjarias mesmo, são poucas. Então a gente vai trocando figurinhas, trocando informações. A gente não retém o conhecimento. Assim algumas pessoas foram pedindo para participar da feira, o que é um prazer. Temos forjadores que vieram de São Paulo, Curitiba, de todo canto. Tem até um tatuador de Pernambuco. Não é ferreiro, mas se encantou com a questão do artesão, de fazer manualmente”.
Marquito destacou ainda o potencial turístico da festa, que “vende” Santa Rita de Ouro Preto para o Brasil. Segundo ele, em 2022, cinco mil pessoas estiveram na feira. Para 2023, a estimativa era de um público 30% maior.
“A ideia é trazer o turista para conhecer aqui e Ouro Preto, que tem um charme todo especial. Aproximando o pessoal daqui por conta de uma festa lúdica, acaba que o pessoal conhece Ouro Preto, passeia e vai vendo as atrações que tem”.
O que chama a atenção é que mesmo com o grande sucesso da feira, somente três pessoas tomam frente na organização: Marquito, sua esposa e seu sócio, Domingos.
“A gente tem algumas dificuldades, mas o pessoal gosta e a gente consegue juntar todo mundo, que é apaixonado pelo negócio”.
Combate medieval
O evento contou com combates amistosos de luta medieval. O combate consiste em tipos de batalha. O famoso 1x1, onde dois duelistas se enfrentam, sem nenhuma interferência. Ou também, lutas de grupos em 16x16, 21x21 ou também pequenos exércitos se enfrentando. A maior batalha já vista nessa modalidade de esporte, no Brasil, foi de 150x150.
A meta do Combate Medieval depende do modo de batalha. No duelo, a meta é a pontuação, sendo que apenas “golpes limpos” são contabilizados. Portanto, apenas encostar a arma no rival não conta, tem que ser um golpe que realmente atinja o adversário. Já no duelo, o objetivo é simplesmente derrubar os rivais.
Em Outro Preto, Cecílio Moreira da Cunha Filho, de Barbacena, se encantou pela história, pelos filmes medievais e cavaleiros. Com isso, começou a fazer armadura de cota de malha em 2011 por diversão. Nisso, conheceu o HMB, ou combate medieval histórico, que chegou ao Brasil em 2017, e se apaixonou.
Cecílio conta que começou fazendo sua própria armadura, por não ter condições de comprar uma, e quando se deu conta estava fazendo as vestes para o Brasil inteiro.
“Eu larguei meu emprego e vivo disso até hoje. Eu faço armaduras medievais para o esporte e sou um dos atletas mais veteranos no país”, falou.
De acordo com Cecílio, sua armadura pesa aproximadamente 25 quilos e é inspirada num modelo utilizado na Alemanha, em 1368. Ele explicou, ainda, que existem várias categorias dentro do esporte — duelos, MMA, combate em grupo — e que as armas utilizadas são reais.
“O combate medieval histórico consiste em vestir uma armadura medieval real, não são armaduras inventadas, não são feitas da nossa cabeça, não são fantasia. Tem uma prova arqueológica mostrando que era feito desse jeito, com esses mesmos materiais. É aço, tecido, couro, tudo real, tem regras de segurança, existe uma federação brasileira desse esporte, da qual eu sou filiado, e hoje somos mais de 80 atletas no Brasil”.
Cecílio já viajou para mais de 15 cidades para lutar e dar palestras em escolas e faculdades. Na feira medieval de Santa Rita de Ouro Preto, as lutas que estavam acontecendo eram amistosas, mas ele ressaltou que em campeonatos os combates são sérios e os nocautes não são incomuns.
“Cada modalidade tem uma contagem de pontos diferentes. São quatro juízes e cada round tem, aproximadamente, 1:30 minuto. Contam os pontos e quem fizer mais pontos ganha”.
Tatuagem Handpoke
A feira medieval de Ouro Preto também contou com um tatuador vindo de São Paulo que tatua há cinco anos, sendo dois deles com a técnica nórdica chamada Handpoke. Trata-se de um tipo de tatuagem usada no Egito e na Escandinávia que não utiliza máquina e é feita à mão. Breno Monteiro Pereira, conhecido como Hafr, pega o lado dos vikings e cria uma arte tradicional da época, inspirado em achados arqueológicos, principalmente nas inscrições rúnicas. Tudo pautado na história, com bastante estudo da cultura para fazer a arte da forma mais tradicional possível.
Hafr conta que a tatuagem handpoke pode demorar de 20 a 30 minutos em caso de um desenho pequeno e de 40 minutos a uma hora uma arte grande. E o tatuador não faz decalque, a tattoo é feita diretamente à mão. A técnica nasceu milhares de anos antes de Cristo. Existem alguns achados arqueológicos disso, mas o mais famoso é a múmia Ötzi, que foi encontrada há 3.500 anos com mais de 55 marcas de tatuagem handpoke pelo corpo.
“Eu seguro a agulha direto com a mão e faço ponto por ponto à mão na pele. O bom dessa técnica é que ela é muito menos agressiva para a pele, então dói menos. Demora um pouco mais, porque é um trabalho mais devagar, mas fica um trabalho que dura tanto quanto uma tatuagem atual. A máquina de tatuagem vai furar cerca de 60 ou 70 vezes por segundo, a minha mão vai ser três ou quatro, por isso dói menos. E, como eu estou com a mão, eu tenho a sensibilidade da espessura da pele e da região que eu vou tatuar para saber se eu peso mais ou menos a mão.”
Casamento Medieval
Na edição do ano passado, houve até um casamento no Ouro Preto Medieval. O ouro-pretano Rômulo de Paula, músico e cervejeiro, apaixonado pela cultura nórdica, se casou no evento em 2022.
Rômulo conta que aconteceu uma pequena festa em uma taverna com os expositores e, por coincidência, ele e sua esposa se encontraram com um artesão que possui conhecimento dos ritos nórdicos e, de forma espontânea, foi comprar uma aliança e acabou se casando no evento.
“Fomos comprar algumas coisas com ele, nos interessamos pelas alianças e eu brinquei com ele ‘você vai me casar’, ele respondeu que tinha tudo para fazer um casamento. Nós registramos o casamento em vídeo. Ficou meio marcado, todo mundo comenta ‘teve até casamento aqui’. E hoje terá renovação de votos. O casamento nórico é algo muito pautado no trabalho manual, então envolve muito a ideia de unir-se com a pessoa para construir algo.”
(Vídeo do casamento)
Cervejeiro, Rômulo também vende sua cerveja Conde de Bobadela no Ouro Preto Medieval. Para o evento, ele cria uma garrafa específica com rótulo do evento com uma arte diferente todos os anos.
“É uma cerveja que é feita 50 litros por ano somente. Ela demora seis meses para ficar pronta, curtida em carvalho francês. Então, é uma cerveja bem especial e bem boa para o frio, porque ela tem 11% de álcool, bem quente, para tomar devagar”, contou Rômulo.
Formado em violão pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Rômulo tem uma banda chamada O Canto de Yotun, que possui um repertório que varia entre períodos históricos e de fantasia de jogos, séries e filmes. Os instrumentos são: violoncelo, violino, violão de 12 e 6 cordas, bandolim, Jouhikko (instrumento scandinavo), flauta irlandesa, vozes e percussão. “O nosso primeiro show foi no evento, no ano passado, e foi incrível”, falou.
Cutelaria
Várias barracas da feira viking contava com facas e espadas. Uma família de Juiz de Fora participa de todas as edições do evento em Ouro Preto. O pai, Oswaldo Sixel, expôs algumas armas de guerra da época viking, do século VIII ao XI. O trabalho é fruto de uma pesquisa. Em 2020, ele foi convidado para expor seu trabalho em um livro, que foi publicado em 2021. A partir do estudo, criou uma Sax tipo 3, de aço mola e o cabo em chifre de cervo que comprou de fazendas de caça da Argentina.
O mais interessante nisso tudo é que seu filho, Diego Sixel, de apenas nove anos, já é apaixonado pela cutelaria e ajuda o seu pai na oficina.
“Ele está me acompanhando e faz faca também. No ano passado, ele me ajudou a fazer uma, acompanhando o processo. Já mexe na lixadeira e tem a faca dele também. Ele chegou na oficina um dia, perguntou se tinha papel e caneta, dei um lápis para ele e desenhou modelos de faca. Eu peguei um pedaço pequeno de aço que já estava pronto, fiz o contorno do aço e falei para ele fazer os modelos dentro. Ele fez três, escolhemos qual ele gostou mais e fizemos juntos”, contou Oswaldo.
Diego disse que mexe em lixadeira, furadeira, parafusadeira, martelo e forja na oficina. “É um pouco difícil de fazer, mas quando se entende fica fácil. Quando você forja o aço e bate nele, o aço fica quente e mole, aí você pode bater nele com o martelo e ir moldando”.
Hidromel
A primeira bebida do mundo também estava presente na festa medieval em Ouro Preto. Nascido em Córdoba, na Argentina, e morador de Santo Antônio do Leite há 16 anos, Leandro Leonel Constantino é apicultor, mestre cervejeiro e artesão. Ele produz própolis e gosta de ser autossustentável. Além disso, expôs o famoso hidromel.
O hidromel é feito basicamente de água, mel e fermento. São 18 dias de fermentação durante seis meses ou um ano. A bebida possui um teor alcoólico que varia entre 7% e 15%, mas a que ele faz é entre 9% e 10%.
Leandro se identifica muito com a cultura medieval, mais especificamente com os Bárbaros, que habitavam o norte da Europa em uma região conhecida como Germânia. Os germânicos eram formados por vários povos que, a partir do século III d.C, migraram e invadiram as terras do Império Romano do Ocidente.
“Me sinto um bárbaro, que era mal falado pelas pessoas. Mas eles não foram ruins. Era uma comunidade que vivia sua vida e chegou um cara imperialista que quis mudar tudo aquilo. Acho isso ruim”, disse Leonardo.
Com tanto tempo morando em Minas Gerais, o cervejeiro conta que já se sente mineiro de coração. “Eu sempre fui artesão. Conheço um pouco da América Latina, o meu país todo, Chile e o Brasil me chamava muito a atenção. Tinha medo do idioma, mas eu vim e no meio do caminho eu encontrei a minha companheira, que me trouxe aqui para Minas. Amo o Brasil. É uma cultura maravilhosa, cheia diversidade e troca de ideias.”
Recriação histórica
O casal Marcelo Mendes Casariego e Roberta Batista, do Rio de Janeiro, expôs um trabalho de recriação histórica em que pegam achados da era viking que estão expostos nos museus de Oslo e da Noruega e fazem a reprodução mais fiel possível em cima desses achados.
Em Ouro Preto, os artesãos tinham as tradicionais canecas e outros objetos no tom mais natural possível da madeira. Seus produtos já foram para exposições na França, Inglaterra, Nova York e Portugal.
“Começou como hobbie. Tem um grupo de reprodução histórica da era viking que a gente já praticava e estudava achados arqueológicos e reproduzia. O Marcelo começou a gostar de trabalhar com madeira e a partir daí virou negócio”, contou Roberta.
Um TCC que virou moda
Adriane Cristina saiu de Curitiba, sua terra natal, para expor seu trabalho na feira medieval de Ouro Preto. Formada em design e moda, com pós-graduação em Modelagem e moulage, ela criou uma marca de roupa medieval a partir de seu trabalho de conclusão de curso. Seu TCC foi roupas com inspirações medievais para eventos temáticas. Após se formar, colocou a ideia no papel.
“Eu não faço medieval histórico e sim inspirações medievais, porque o objetivo da marca é que algumas peças possam ser utilizadas no dia a dia. Então, a pessoa não vai gastar dinheiro numa peça apenas para ir num evento. Algumas peças, ela pode utilizar no dia a dia também”, contou Adriane.
Adriane dava aula na mesma instituição que se formou, UniSenai, mas saiu há duas semanas e agora vai se dedicar 100% à sua empresa. “Eu costuro há 22 anos. Já tive empresas de uniforme para empresa. Só mudei o foco”, disse.
Já é a segunda vez que a costureira vai à Santa Rita de Ouro Preto expor seu trabalho. Adriane foi para o distrito na edição passada junto de sua família e aproveitou para fazer um turismo por Minas Gerais.
“Fomos para Ouro Preto, Tiradentes, Resende Costa, Itatiaia e neste ano veio apenas eu e minha irmã, mas pretendemos fazer a mesma coisa. Minas é encantador”, contou.
FONTE: Estado de Minas