Line-up do The Town e outras iniciativas provam que rock feito por mulheres continua vivo

29 ago 2023
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Demi Lovato, Wet Leg, Garbage e Yeah Yeah Yeahs levam rock cantado por mulheres ao festival. Podcast analisa presente e futuro do estilo que perdeu suas duas rainhas neste ano. Shirley Manson, do Garbage, Demi Lovato e Keren O, do Yeah Yeah Yeahs, vão levar a veia rock para o The Town

Digação/Joseph Cultice/Reprodução/Twitter da cantora/Reprodução/Instagram do Yeah Yeah Yeahs

Demi Lovato deu uma guinada no ano passado com seu álbum "Holy Fvck". Ela convocou uma banda só com mulheres, incluindo Nita Strauss, guitarrista do Alice Cooper que arrebentou nas apresentações da cantora no ano passado.

Ela, Pitty, o duo britânico do Wet Leg, Shirley Manson, do Garbage, Karen O, do Yeah Yeah Yeah, e até mesmo Bebe Rexha são alguns dos nomes que vão mostrar que o rock feminino está presente no The Town, que começa neste sábado (2).

O g1 ouviu, podcast de música do g1, conversou com especialistas para entender o passado, o presente e o futuro do rock feito por mulheres. Depois da morte de duas pioneiras no estilo, Rita Lee e Tina Turner, o que é ser roqueira hoje?

OUÇA ABAIXO O PODCAST G1 OUVIU.

Legado do rock feminino

De carreira bem consolidada, a cantora Pitty costuma ser a primeira apontada como uma herdeira de Rita Lee. São trinta anos de trajetória, segue com shows lotados e potentes.

Para além dela e das atrações do The Town, outros nomes têm feito barulho dentro do estilo. O trio de boygenius, por exemplo, ganhou capa de revista e repercussão da crítica especializada. Tem também Florence Welch, da banda Florence + the machine, o trio de irmãs do Haim, e veteranas como Alanis Morissette, que se apresenta em novembro, em São Paulo.

Florence + the Machine durante apresentação no festival Mita 2023

Divulgação

Mas qual a diferença entre elas e Rita e Tina?

"Acho importante a gente entender que Rita Lee e Tina Turner foram formadas, como personas, em uma época que não volta mais. Elas estavam sozinhas, lá nos anos 60 ou antes disso", diz Claudia Assef, do Women’s Music Event, que organiza conferências para debater a mulher na música e no mercado musical.

Tina Turner canta durante show em Hamburgo, na Alemanha, em julho de 1987

Michael Urban/Reuters/Arquivo

"E neste período até os anos de 1990, a gente viveu uma época de grandes álbuns e de grandes construções de carreiras sólidas, e hoje não temos mais isso, a gente tem uma coisa muito mais efêmera", afirma. "Não estou falando que não existem artistas que ainda apostam em álbuns, que querem criar o conceito, mas não é o mais corriqueiro dentro da indústria fonográfica."

A especialista completou que hoje mais artistas surgem em cena e indica que o rock pode estar mudando de cara - e entrando em outros estilos, como o pop, movimento que pode ser visto em apresentações recentes de Miley Cyrus e Demi Lovato.

Miley Cyrus se apresenta no Lollapalooza 2022

Luiz Franco/g1

"Não digo que a Miley Cyrus seja uma herdeira da Tina Turner, porque as circunstâncias são diferentes. Talvez a herdeira da Tina Turner seja a Beyoncé, até porque ela se inspirou na Tina no começo da carreira. Se alguém pode usar esse chapéu, no meu entender, seria a Beyoncé", diz.

Por mais que seja chamada de popstar, a cantora possui os atributos dignos de rockstar, seja pela voz poderosa, seja pelas power ballads que ela apresentou durante sua carreira.

Demi Lovato no The Town: veja como será o show

Miley Cyrus também tem mostrado suas veias mais roqueiras com apresentações potentes, como a apresentada no Lollapalooza, e covers, a exemplo de "Heart of glass", do Blondie, gravada em 2020.

"Ela tem contato com a boa música dentro de casa e ela sempre teve uma pegada rebelde e o rock sempre foi linkado com esse lance de atitude, de uma certa rebeldia. Ela começou muito cedo, com aquele pop da Disney, talvez fosse uma coisa mais ligada à idade. Hoje, ela mais madura, faz um som como 'Flowers', uma música pop que é muito rock pop, quase uma herança da Sheryl Crow", diz Claudia.

Cool for the summer encerra apresentação de Demi Lovato

Outra ex-estrela do elenco da Disney também se rendeu ao estilo mais rebelde – e roqueiro. Demi Lovato deu sua guinada de vez ao estilo no ano passado, ao lançar "Holy Fvck", em que apostou no emo e no punk rock.

A cantora viaja com uma banda formada por mulheres, bem calcadas no rock. A guitarrista Nita Strauss, por exemplo, saiu da banda do ícone roqueiro Alice Cooper.

"O rock está em evidência nos shows. Tanto homens quanto mulheres tem buscado o rock nos shows grandes. Mesmo o pop, que está indo por essa veia mais roqueira, para trazer mais atitude, peso pro palco", diz Claudia. "Como a Luísa Sonza tocando guitarra no show. Elas estão trazendo muito feminismo para o palco. Elas estão trazendo as mulheres para o palco, coisa que as artistas mais antigas não faziam, porque não se tinha muita essa consciência."

Rock para as meninas

Ao colocarem elementos do rock, como a sonoridade e a atitude, Demi, Miley, Luísa e entre outras artistas, abrem espaço para novas caras dentro do estilo.

A cantora Day Limns, que tem apresentado influências roqueiras em seus trabalhos, é uma das que entraram para o rock depois de ouvir outras mulheres. Suas referências começam em Avril Lavigne, Amy Lee, do Evanescence, e Hayley Williams, do Paramore.

"A primeira lembrança que me vem à cabeça é conhecendo a Avril Lavigne, pelo meu primo. Eu era uma criança de 7 anos de idade, em 2002. Meu primo me mostrou 'Sk8er boi'. Então, o rock para mim veio muito pop, já chegou em uma mulher que estava ali no meio das divas pop e falava que não era pop", diz a cantora.

Ela conta que depois de seu contato com Avril, outras bandas foram surgindo no seu radar, sempre com a pegada entre o pop e o rock. Fall out boy, Panic at the disco, Blink-182 e Green Day, além de Pitty.

Paramore, com Taylor York, Hayley Williams e Josh Farro

Divulgação/Lindsey Byrnes

"Eu descobri que queria ser uma performer no palco quando vi a Hayley [Williams, do Paramore] em cima do palco. Tinha visto o clipe de 'Misery Business', mas não tinha pirado, mas quando vi ao vivo o show eu fiquei 'meu Deus, quem é essa mulher? Eu quero ser como ela'", diz a cantora brasileira.

"E eu me identifico ainda mais pelo fato de ela ser uma mulher cristã, ela também veio de um background religioso, cantava sobre essas coisas e me tocava muito nesse lugar. Eu me sentia menos mal."

Assim como Day, outras meninas também podem se sentir representadas e sonhar com a possibilidade de ser uma rockstar. Flávia Biggs, roqueira e à frente da banda The Biggs, encabeça a missão de apresentar o rock feito por mulheres para garotas.

Desde 2013, Flávia mantém o projeto Girl Rock Camp, em Sorocaba, no interior de São Paulo. Ela recebe meninas de 7 a 17 anos que tenham o interesse em aprender instrumentos musicais.

Day Limns começou a ouvir rock depois de conhecer Avril Lavigne, Evanescence e Paramore

Gabriel Freitas

"A gente acaba fazendo uma atividade de empoderamento feminista que usa a música, a vivência musical como estratégia", diz Flávia. Ela garante que não precisa nem curtir rock para participar do projeto.

"O rock está no nome [do projeto], mas é mais pela atitude do que pelo som, porque as bandas fazem diversos tipos de som. É o rock na atitude, rock questionador, que traz diversidade, questiona o status quo, de 'quero uma sociedade melhor para todo mundo', 'quero a revolução'. Esse é o punk rock, não necessariamente só o estilo."

"Com o tempo, o rock, o punk rock, foi ficando para trás. Tanto que quando a gente fala hoje no Camp sobre o Riot Girls, sobre feminismo punk, Bikini Kill, e tocamos a música, muitas meninas se apaixonam porque não conheciam", diz.

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"Uma menina, na pandemia, me mandou uma mensagem porque ela tinha descoberto o Riot Girl, que era o feminismo nos anos de 1990, e que estava apaixonada. Uma menina de 17 anos, ouvindo Bikini Kill pela primeira vez, é maravilhoso."

Mais mulheres nos line-ups

Uma vez que uma artista consegue influenciar e trazer ainda mais meninas e mulheres para o estilo, elas precisam de visibilidade também nos palcos e nos festivais. Estes espaços, no entanto, nem sempre estão abertos a elas. É o que mostrou um estudo feito pela pesquisadora Thabata Arruda.

A especialista fez um levantamento com 70 festivais nacionais entre os anos de 2016 e 2018 para mapear quantas mulheres se apresentaram.

Garbage, com Shirley Manson, no line-up de The Town

Divulgação/Joseph Cultice

O estudo dividiu as atrações em três categorias: mulheres solo, como a Pitty, bandas mistas, quando tem ao menos uma mulher, e banda com toda composição feminina.

"De todos esses, o número de mulheres não passou de 20%, contabilizando as três categorias", diz Thabata. "Falando pelo rock, o que eu percebi foi que muitos festivais que tiveram sua origem dentro do rock, por exemplo, Abril pro Rock, Goiana Noise e Porão do Rock, festivais que hoje são mais abrangentes, mas começou genuinamente com o rock, estão com os números mais gritantes", afirma a pesquisadora.

"O Porão do Rock teve ano com 0% de mulheres solistas, o João Rock tem o hábito de pessoalizar a Pitty como representante do rock feminino do Brasil, sendo que a gente tem outras bandas, tem bandas ainda na resistência, na ativa, e são ignoradas porque tem a Pitty."

"Não é só o fato de ter diversidade. A gente está negando posto de trabalho para mulheres que passam a vida inteira se profissionalizando e não conseguem vislumbrar uma carreira que seja consistente, que se sustente, porque a maior fatia de renda que o artista tem vem de show, de turnê", afirma.

Para fazer o trabalho, Thabata conta que usou a metodologia de um mesmo estudo da Argentina. Segundo ela, a partir do resultado desta pesquisa por lá, foi aprovada em 2019 a chamada Ley de Cupo, que determina que todos os festivais do país com mais de três atrações musicais precisam ter pelo menos 30% e mulheres.

Pitty se apresenta na edição de 2023 do João Rock

Igor do Vale / 2023

"O Inamu [Intituto Nacional de la Musica, órgão que fiscaliza a aplicação da lei] divulgou a análise de como a lei está performando e são números incríveis: festivais que saíram de 0% para 30%, festivais que atingiram 50% de equidade, porque a Argentina entende que se a mulher não está lá, entra no guarda-chuva de violência de gênero, de trabalho."

O relatório argentino mais recente destacou o desempenho dos festivais de rock. Segundo o órgão fiscalizador, se no biênio de 2016 e 2017 a média de mulheres nos festivais era de 9%, no ano passado, eles registraram a média de 39%.

Aqui no Brasil, uma edição especial do Rock The Mountain, que acontece em novembro, em Petrópolis, no Rio, convocou apenas mulheres para o line-up. Entre as convidadas estão nomes como Maria Bethânia, Marisa Monte e Pitty.

"O grande desafio na verdade para a gente fazer um line-up 100% feminino foi caber tanta mulher boa dentro de poucos dias. A gente tem só dois dias e dez palcos, com mais de cem artistas", diz Ricardo Brautigam, à frente do festival.

Ele ainda conta que, ao ver o estilo crescendo, criaram nesta edição um palco especial chamado 'Casa do Rock', para abrigar novos artistas e bandas. "Levando em consideração um line-up todo feminino, vamos ter um line-up 100% feminino aqui também" diz Brautigam. "São bandas pequenas, a maioria desconhecida", conta.

Brautigam diz que teve um pouco mais de dificuldade para encontrar bandas para ocupar esse lugar. "Foi muito mais fácil achar bandas masculinas. Eu precisei dar uma boa pesquisada para encontrar bandas e dar esse destaque", diz.

"Acho que esse é um trabalho geral, não só dos músicos, mas dos produtores e das casas de evento e dos bares, de procurar mesmo, porque é muito mais fácil chamar uma banda masculina que você já conhece, mas tem que partir do produtor procurar e dar esse espaço para as mulheres."

Thabata ainda ressalta a importância do público em alertar curadores sobre a falta de diversidade, mas não tira a responsabilidade também dos artistas.

"Fui fã da Pitty por muito tempo. Ela está em uma posição confortável, pode já negar convite, questionar. É uma postura a ser adotada quando ela for tocar em um festival e só tiver ela de mulher, de exercer seu poder de influência que ela tem hoje, que faria muito festival pensar", afirma Thabata.

"Já dá para negar convite, questionar curador, dá para fazer um bocado de coisas que o Far From Alasca não pode, As Mercenárias não podem. É falar ‘e aí, João Rock, pela quarta vez sou a única mulher no line-upe? É um caminho para ver o cenário mudar."

infográfico


FONTE: G1 Globo


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