Bombardeio de hospital em Gaza, ainda cercado de incógnitas
O hospital Ahli Arab de Gaza foi atingido por um disparo israelense? Ou foi alvo de um míssil palestino defeituoso? Após a tragédia de terça-feira, pela qual Hamas e Israel se acusam mutuamente, analistas consultados pela AFP não descartam nenhuma hipótese.
Contudo, os especialistas se mostraram céticos de modo geral de que tenha sido um bombardeio clássico, como os que o exército israelense lançou em Gaza em represália ao ataque sem precedentes do movimento islamista palestino em solo israelense em 7 de outubro.
A AFP fez a checagem com consultas a especialistas em armamentos, analisando imagens verificadas e comparando-as com diferentes testemunhos.
- O que mostram as imagens disponíveis? -
Um vídeo gravado em Gaza pela emissora Al Jazeera, do Catar, verificado pela AFP, mostra o momento exato em que ocorre uma explosão nas instalações do hospital Ahli Arab, às 18h59 locais (12h59 de Brasília). Outros vídeos gravados por câmeras de segurança do lado israelense também mostram esta cena.
O vídeo viralizou. Nele, vê-se um projétil luminoso riscando o céu que, em seguida, desaparece em pleno voo, com um grande clarão. Menos de dez segundos depois, ocorrem duas explosões no solo, uma delas no local do hospital, situado no norte de Gaza, confirmou a AFP com ferramentas de geolocalização.
Em outras imagens difundidas online após a explosão e que a AFP também verificou, veem-se veículos em chamas em um estacionamento do hospital, além de escombros e corpos no chão, vários deles de crianças.
A AFP gravou vários vídeos no hospital no dia seguinte e neles aparecem veículos carbonizados no estacionamento. Ao lado, vê-se uma parte de gramado salpicada de roupas, objetos pessoais e manchas de sangue. Isto poderia indicar que ali tinha gente acampada.
Também veem-se prédios nos arredores com os vidros quebrados. No chão, identifica-se o que parecem ser marcas de impacto, inclusive uma pequena cratera.
Segundo as autoridades de Gaza, no local havia centenas de feridos e doentes, e também civis que tinham se refugiado ali.
"Estávamos operando, houve uma forte explosão, o teto caiu da sala de cirurgia. É um massacre", contou Ghassan Abu Sittah, médico da ONG Médicos Sem Fronteiras.
"As pessoas estavam do lado de fora, nos jardins e debaixo das árvores. De repente, tudo ficou preto, com corpos e sangues por todos os lados", disse à AFP Mohammed Qriq, moradora de Gaza.
"Viemos para cá [o hospital] por medo dos bombardeios. Sentimos que um foguete o atingiu, todo o local foi bombardeado. Fomos para outros locais próximos. Os corpos estavam desmembrados, pessoas idosas, crianças, mulheres", enumerou Waleed, outro morador de Gaza.
- Quais seriam as possíveis causas? -
Nas redes sociais, há quem defenda a tese israelense de que a explosão foi causada pelo lançamento, a partir de Gaza, de um foguete defeituoso, cujos destroços teriam caído no hospital, e outros defendem que foi resultado de um bombardeio da força aérea israelense.
Analistas consultados pela AFP se mostraram prudentes e não descartaram nenhum cenário.
No entanto, acreditam ser pouco provável que a tragédia tenha sido resultante de um bombardeio clássico, devido aos danos limitados nos prédios próximos ao estacionamento e à falta de uma grande cratera como as que algumas armas israelenses costumam deixar.
"Custa-nos relacionar a forte explosão em solo [visível no vídeo da Al Jazeera] aos poucos danos vistos no hospital. Parecia que o próprio hospital não tinha sido atingido", destacou Héloïse Fayet, pesquisadora do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), constatando que a maioria dos danos observados se concentra no estacionamento, no gramado dos arredores e nas fachadas dos imóveis.
No entanto, até o momento há poucas imagens do interior dos prédios.
"A hipótese mais provável é que um projétil tenha caído nos veículos que estavam ali e [causado] uma explosão nos tanques de gasolina de vários deles", afirmou a pesquisadora, especializada em geopolítica e Forças Armadas no Oriente Médio.
Os danos visíveis "encaixam na hipótese de pedaços de motor, por exemplo, de um foguete, que caiu seguindo um alinhamento balístico, projetando estilhaços, materiais inflamáveis e criando uma onda expansiva", avaliou Joseph Henrotin, chefe de redação da revista francesa Défense et Securité Internationale.
"Há danos nos edifícios. Vemos telhas arrancadas, vidros quebrados na altura do hospital e impactos nas paredes", explicou o especialista. No entanto, "nenhum imóvel foi atingido diretamente", enquanto "se alguém aponta para um prédio com as munições e as capacidades que os israelenses têm, normalmente o atinge", acrescentou.
Segundo ele, as zonas de impacto se caracterizam por "pequenas crateras [...] O que saltou ali não é nada enorme" e "não corresponde às armas usadas pelos israelenses".
"A cratera visível em solo não é muito grande. Para mim, não se trata de uma bomba lançada de um avião, mas de um morteiro ou algo assim", afirmou uma fonte militar francesa que não quis ser identificada.
"Há muitos foguetes que têm incidentes de tiro", disse, nesta quarta-feira à AFP, um encarregado europeu de Inteligência. "Israel provavelmente não o fez", em vista das "pistas sérias" com que seus serviços de inteligência trabalham, disse.
"Um material de qualidade militar teria causado infinitamente mais danos. Vemos isso quando Israel bombardeia, destroem prédios de uma vez só", afirmou Xavier Tytelman, consultor em aeronáutica e defesa, e encarregado da revista Air et Cosmos.
Mesmo assim, o estacionamento do hospital poderia ter sido alvo de um disparo - voluntário ou não - do exército israelense?
"Embora tenha sido por engano e tivessem apontado para este local por engano, não há nenhuma bomba israelense que faça isto. O efeito de uma bomba JDAM [guiada por GPS] é incomparável com o que vimos ali", afirmou Tytelman.
É possível que tenha sido usada uma munição menor? Por exemplo, uma micro-munição lançada por drone, um disparo de uma aeronave ou um míssil lançado de helicóptero?
Sem descartar completamente estas possibilidades, os analistas consultados pela AFP consideram que é pouco compatível com as imagens disponíveis e, portanto, bastante improváveis.
- Troca de acusações -
Fosse do tipo que fosse, palestinos e israelenses se acusam mutuamente de responsabilidade pelo disparo.
"Não houve disparos do exército por terra, mar ou ar que tenham atingido o hospital", afirmou à imprensa o general Daniel Hagari, porta-voz do exército israelense, divulgando mapas e uma gravação em áudio que, segundo ele, trata-se de um diálogo entre dois membros do Hamas, mencionando que a tragédia foi obra da Jihad Islâmica, outro grupo armado ativo na Faixa de Gaza.
No entanto, no X (antigo Twitter), um influenciador israelense, com fama de ser próximo do premiê Benjamin Netanyahu, tinha anunciado, após a explosão, que "o exército israelense [havia] bombardeado uma base terrorista do Hamas em um hospital de Gaza". No entanto, ele se retratou logo depois e afirmou que se baseou em artigos da imprensa "equivocados" ao escrever esta postagem.
Um porta-voz do exército israelense, Jonathan Conricus, reiterou nos últimos dias que não era "uma bomba israelense, pois não há cratera nas fotos".
O grupo Jihad Islâmica, enquanto isso, qualificou de "mentiras" as acusações e afirmou que a tragédia foi provocada por um bombardeio aéreo israelense.
"Este massacre horrível foi realizado com ajuda de um arsenal militar americano, do qual apenas o ocupante [Israel] dispõe", afirmou o Hamas na quarta-feira.
- Balanço de vítimas incerto -
Em fotos e vídeos da AFP veem-se corpos envoltos em lençóis, colchas e sacos mortuários.
Segundo o Hamas, a explosão deixou 471 mortos entre os deslocados do conflito que tinham se refugiado dentro do hospital.
Mas um dirigente europeu de Inteligência, consultado pela AFP, estimou que este bombardeio deixou "várias dezenas" de mortos.
Uma nota dos serviços de Inteligência americanos, à qual a AFP teve acesso parcial na quinta-feira, dá conta de um balanço de vítimas fatais "provavelmente no extremo inferior da faixa entre 100 e 300".
FONTE: Estado de Minas