Caçadores inuítes culpam navios de cruzeiro por desaparecimento de narvais

04 out 2023
Fique por dentro de todas as notícias pelo nosso grupo do WhatsApp!

Para caçar as baleias narvais, cujas longas presas em espiral inspiraram o mito medieval dos unicórnios, é necessário silêncio absoluto.

Tanto que os caçadores aborígines de Scoresby Sound, no leste da Groenlândia, proíbem seus filhos de atirarem pedras na água, temendo que assustem estas baleias, também conhecidas como unicórnios-do-mar.

Ensinado a caçar por seu avô, Peter Arqe-Hammeken, de 37 anos, rastreia os narvais durante o breve verão ártico.

Mas eles estão ficando cada vez mais raros.

Neste fiorde repleto de icebergs, a quietude da caça tem sido interrompida por novos visitantes - passageiros de navios de cruzeiro que correm para ver a cultura inuíte antes que seja tarde demais.

Neste verão, cerca de 60 embarcações, de pesqueiros a grandes navios de cruzeiro, chegaram à cidade de Ittoqqortoormiit, na embocadura do fiorde Scoresby Sound - o maior do mundo - no único mês em que está livre de gelo.

Enquanto alguns veem o turismo no Ártico como uma forma de revigorar sua comunidade remota, a cerca de 500 km do assentamento mais próximo, outros se preocupam de que a atividade possa destruir as últimas sociedades inuítes de caça.

"Uma semana atrás, havia caçadores lá fora, tentando capturar narvais. Mas um par de navios seguiu na direção deles", conta à AP Arqe-Hammeken, para quem os navios de cruzeiro estão espantando a fauna selvagem.

"Quando eles vêm à cidade, tudo bem. Mas quando vão ao território de caça, não é bom", acrescenta.

Em um Ártico que aquece depressa, com temperaturas que sobem até quatro vezes mais rápido do que a média global, os inuítes estão ameaçados por todo lado.

- Territórios de caça ameaçados -

"Os caçadores vivem da caça aqui. Eles têm filhos", diz Arqe-Hammeken, nascido e criado em Ittoqqortoormiit, que teme pela forma de vida tradicional da comunidade, para a qual a carne de narval é crucial.

"Os narvais são muito importantes para a economia e para a [cultura alimentar da] Groenlândia", diz o professor Jorgen Juulut Danielsen, ex-prefeito da cidade, citando o "mattak" - pele crua e gordura de narval - como uma iguaria tradicional.

Os inuítes caçam estas baleias dentadas com arpões e rifles, respeitando cotas estritas, desde que a lucrativa exportação das presas foi proibida em 2004.

Mas as mudanças climáticas estão reduzindo o hábitat dos narvais e cientistas alertam que eles irão desaparecer por completo do leste da Groenlândia se a caça não for banida.

Os números caíram tanto que os caçadores conseguiram encontrar apenas o suficiente para alcançar a cota em 2021.

O gelo mais frágil por causa do aquecimento global também dificulta rastrear as focas - outro item básico da dieta local -, nos buracos que elas abrem no gelo para respirar.

"Não há gelo agora, enquanto antes havia gelo o ano todo", afirma Arqe-Hammeken, olhando para o mar de Ittoqqortoormiit.

Seu avô costumava entretê-lo com histórias de captura de focas nos arredores da cidade. Agora, os caçadores precisam se aventurar no interior do fiorde para encontrá-las.

"Há trinta anos, havia muitos caçadores. Hoje, há apenas 10 ou 12", conta Arqe-Hammeken.

- Poluição vinda de longe -

Nada cresce na tundra estéril e com os navios de carga só conseguindo passar pelo fiorde gelado uma vez por ano, "é importante conseguirmos [nossos nutrientes] dos animais que caçamos localmente", diz Mette Pike Barselajsen, que gerencia a agência de turismo local, Nanu Travel.

"O que caçamos é muito importante para a nossa cultura", acrescenta. Roupas tradicionais, como calças de pele de urso polar e botas de pele de foca ainda são usadas pelos caçadores e em cerimônias religiosas.

Mas, um estudo publicado em julho na revista científica The Lancet Planetary Health revelou que os habitantes tinham umas das maiores concentrações das cancerígenas PFAS (substâncias per e polifluoroalquil) no sangue por ingerir carne de foca, narval e urso polar, mesmo vivendo longe das fontes de poluição.

Os "compostos químicos eternos" das roupas impermeáveis, tapetes, espuma antichamas e pesticidas são levados para o norte pelas correntes oceânicas antes de entrarem na cadeia alimentar, chegando aos inuítes.

Com tanta coisa contra eles, alguns caçadores estão mudando de atividade, passando a caçar linguados para complementar sua renda, afirma Danielsen. Outros estão se voltando para o turismo.

- Turismo X preservação -

Ittoqqortoormiit, com suas casas coloridas, não poderia ser mais pitoresca, empoleirada em uma península rochosa de frente para a embocadura do fiorde Scoresby Sound, cercado por geleiras.

Antes tranquila, agora está cheia de grupos de turistas de cruzeiros tirando fotos de peles de ursos polares penduradas nas casas.

"A gente se pergunta como as pessoas vivem aqui", diz Christiane Fricke, uma turista alemã, atraída como muitos outros a vivenciar a cultura tradicional antes que desapareça.

Muitos caçadores já trabalham como guias de turismo ou transportando os visitantes em trenós puxados por cães.

"É de grande ajuda para os caçadores ter uma renda também com o turismo", afirma Barselajsen.

Mas outros temem que os navios de cruzeiro tornem a caça impraticável.

Danielsen, o ex-prefeito, admite que aqui existe um conflito entre aqueles desejosos de abraçar o turismo e os que temem que possa afetar a cultura nativa, especialmente a caça de narvais.

Com quase toda a receita do turismo indo para empresas estrangeiras, o governo da Groenlândia está lançando um imposto a ser cobrado de passageiros dos navios de cruzeiro, de forma que as comunidades locais possam receber sua parte.


FONTE: Estado de Minas


VEJA TAMBÉM