Jovens brasileiros e africanos convivem em seminário centenário em BH
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São 11h30 de uma terça-feira ensolarada, e a luminosidade torna mais verde o gramado no interior do Convivium Emaús, no Bairro Dom Cabral, na Região Noroeste de Belo Horizonte. O local inaugurado há cinco anos abriga o centenário Seminário Arquidiocesano Coração Eucarístico de Jesus (Sacej), que reúne 60 jovens com um objetivo: estudar oito anos para ser padre.
Com o término das aulas da manhã, os jovens, despertos desde as 5h30, dirigem-se ao refeitório, mas, antes do início do almoço, aproveitam alguns minutos no espaço aberto. Ao jeito mineiro, juntam-se sotaques nordestinos e o português falado em Moçambique, país africano banhado pelo Oceano Índico, e em São Tomé e Príncipe, no Atlântico. A presença de seminaristas de outros estados brasileiros e do exterior se deve a uma parceria, para intercâmbio, firmada entre a Arquidiocese de Belo Horizonte, à qual o Sacej está vinculado, e dioceses dos locais de origem dos jovens. É o que mostra essa segunda reportagem da série sobre a formação de padre no Sacej, seminário que completa 100 anos.
Nascido em São Paulo (SP) e criado em Araripina, no sertão de Pernambuco, a 690 quilômetros da capital, Recife, Ivan Cândido da Silva, de 40 anos, retrata um brasileiro que une o país – a mãe, Fátima Silva, é nordestina, e o pai, Ari Cândido, paranaense – e tem o desejo, tão logo termine os estudos, de retornar à terra natal, pôr em prática os ensinamentos e fazer o trabalho de evangelização. A ordenação sacerdotal, ainda sem data, ocorrerá na diocese de Salgueiro (PE). Em julho, estará de partida, com a sensação do dever cumprido e saudade dos amigos que fez em BH.
De família simples, pobre e muito católica, conforme declara, Ivan foi coroinha, quando criança, espelhou-se em tios religiosos, incluindo uma tia, freira salesiana, e fez uma experiência, aos 18 anos, ingressando no seminário de Petrolina (PE). Ali, viu que não se sentia vocacionado – e o novo caminho foi o curso de pedagogia, com posterior trabalho em escola. A cada dia, no entanto, o chamado da fé ficava mais forte. “O coração bateu no compasso certo diante da vontade de Deus.”
Aos 33 anos, Ivan fez um reencontro com a vocação e entrou no seminário em Caruaru, no sertão pernambucano. “Voltei à sala de aula, voltei a ser estudante, e agora concluo o curso de teologia na PUC Minas”, afirma, motivado a servir à comunidade com as ações missionárias e comunitárias. “Há uma grande carência de padres na minha região, onde há locais de difícil acesso. Assim, fica mais difícil ainda atender, às vezes, até 65 comunidades de fé, o que significa um sacerdote para cada grupo de 60 mil pessoas.”
Com voz de tenor e integrante do coral Core, do Sacej, o devoto de São José quer usar a arte para chegar ao maior número de fiéis. “Precisamos atender às carências da população. E levar a Palavra de Deus se torna fundamental, pois as necessidades são grandes e permanentes, no Brasil inteiro”, afirma Ivan.
Libras
O seminarista maranhense Rayson Chagas, de 30, quer usar, além de toda a formação filosófica e teológica, o conhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras), própria dos surdos. Com o movimento das mãos, ele comunica o “amor por Deus”, e espera conquistar, assim, um maior número de fiéis para a Igreja.
Natural de São Domingos do Maranhão, a 380 quilômetros da capital do estado, São Luís, Rayson formou-se em biomedicina antes de entrar para o seminário, na diocese de Caxias (MA). “Sabe aquela história de ter um universitário na família? Pois foi assim. Sou de uma família pobre, e esse era o desejo da minha mãe, Suely Ferreira. Depois de concluir o curso, voltei para minha vocação. Deus é tão perfeito, que tudo entrou nos eixos.”
O despertar para a vida religiosa ocorreu na infância: Rayson foi coroinha, conheceu a dinâmica das celebrações na paróquia onde morava, viu como trabalhavam os padres. A força da fé o ajudou muito quando a avó Maria Andrelina, conhecida como Maria Batata, hoje com 83 anos, adoeceu gravemente. Muitas rezas depois, a alegria voltou a iluminar o rosto do maranhense, quando Maria Batalha começou a andar. “Ela está muito bem”, orgulha-se.
E como ficou sua mãe ao ver você trocar a biomedicina pelo seminário?, pergunta o repórter. “Não foi fácil, mas ela aceitou a vocação dos dois filhos. Curiosamente, meu irmão se tornou frei franciscano (frei Raylan Chagas). Estou muito feliz com minha decisão, e, ao terminar a formação no seminário, quero voltar para a terra natal.”
Formação
Até chegar a presbítero (padre), o seminarista passa por longo período de estudos – de sete a oito anos com mais um ano de trabalho pastoral. Seis meses antes da ordenação sacerdotal, condição que permite celebrar missas, atender confissões e consagrar a hóstia, ele se torna presbítero.
Desde o primeiro ano no seminário, na fase propedêutica, quando há preparação para a vida comunitária, o jovem pode ajudar nas missas, mas tudo depende do pároco. Depois da propedêutica, o seminarista tem três anos de estudos filosóficos, para a formação humana, intelectual e espiritual, na etapa Discipular; e mais quatro anos, na fase Configurativa, de teologia, de estudos da Palavra de Deus. Essa etapa ocorre na PUC Minas.
Também como parte do intercâmbio, há jovens de países africanos no Sacej. E o intercâmbio só tem a contribuir na formação, acreditam o moçambicano Faizal Jamal, de 26, e Ângelo Bandeira, de 25, nascido em São Tomé e Príncipe. Conversar com os dois é abrir portas para novas culturas, conhecer universos diferentes e ouvir histórias que chegam do outro lado do Atlântico.
“Se você notar bem no mapa, Madagascar (país vizinho também banhado pelo Oceano Índico) se encaixa perfeitamente no contorno de Moçambique”, diz Faizal Jamal, nascido em Pemba, no litoral moçambicano, “filho de um muçulmano e de uma cristã católica”. Ao ouvir o comentário, o repórter acrescenta: “É mais ou menos como a África e o Brasil!”. A conversa inicial faz Faizal voltar no tempo, falar sobre outro idioma oficial do seu país, Makua, contar o significado de Pemba (“boiar sobre as águas”) e dizer que sua cidade tem “a terceira baía mais bela do mundo”. Numa consulta ao Google, vê-se que ele tem razão.
A trajetória de Faizal inclui a escolha inicial, engenharia mecânica, curso para o qual ganhou bolsa de estudos e deixou de lado, uma experiência na Sociedade Missionária da Boa Nova (de vida apostólica de clérigos e leigos), o namoro com duas meninas ao mesmo tempo e “uma inquietação” que o levava a “vários questionamentos”. O tempo passou e o adolescente foi tirando do caminho o que não se enquadrava no seu jeito de ver o mundo. E transformou as inquietações em rumo certo.
Disposto a viver uma “nova realidade”, ingressou no seminário de Montepuez, onde cumpriu o ano inicial, e depois seguiu para outro seminário, desta vez na província de Nampula, no Norte de Moçambique, para três anos de filosofia. A BH, chegou em 2021, e espera a ordenação sacerdotal para 2025 ou 2026. Entre os planos, na volta a Moçambique, está o de trabalhar com comunidades mais carentes e a juventude – e para isso tem um grande aliado: o violão. “Penso que a música é uma trilha certeira para chegar ao coração dos jovens.”
Voz do coração
De uma família católica de 13 irmãos, de São Tomé e Príncipe, no Oeste da África, o seminarista Ângelo Bandeira gosta de cantar. E soltar a voz e o coração está em seus projetos como presbítero, o que deverá ocorrer daqui a quatro anos. “A vida vocacional é um processo no qual vamos discernir todos os dias. Muitos sonham em ser padre, mas é preciso sentir um ‘chamado’, e confesso que desde criança eu o escutei”, define o estudante do primeiro ano de teologia, na PUC Minas.
A jornada passa, necessariamente, pela experiência, e Ângelo conta que foi para o seminário dos missionários claretianos, aos 17 anos, após a conclusão do ensino médio. Estudou durante quatro anos em Angola até vir para BH, que considera, neste mês de março de altas temperaturas, “mais quente do que em São Tomé e Príncipe”. Em Minas, a exemplo do colega Faizal, fez muitos amigos, embora sentindo diferença nas refeições, especialmente quanto aos temperos. “É bem diferente”, sorri.
Confiante no futuro, Ângelo vê um padre como guia espiritual, e, nos momentos de aconselhamento, também um “irmão mais velho”: alguém com quem se pode conversar em segurança e acolhida. “Cada um tem sua personalidade, jeito de viver, e espero que o melhor mesmo seja confiar em Deus e abrir o coração de cristão católico”.
Ao retornar à África, Ângelo quer levar a Palavra de Deus onde for possível. E, como gosta de cantar, soltando a voz para se fazer ouvir, já que a arte derruba fronteiras e une as nações
FONTE: Estado de Minas