Nei Leite Xakriabá: “A arte é essencial para mostrar que a gente existe”

04 out 2023
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Nei Leite Xakriabá vive na Aldeia Barreiro Preto, umas das mais de 35 existentes na Terra Indígena Xakriabá. Graduado em educação indígena pela UFMG, o artista atuou no ensino de jovens xakriabás em disciplinas que mantêm viva nas escolas a cultura tradicional do seu povo.

 

Em sua dissertação de mestrado “Arte Indígena Xakriabá: com um pé na aldeia e outro pé no mundo”, Nei Leite discute seu trabalho com cerâmica e a transmissão de hábitos e costumes como uma forma de resistência da cultura indígena e de dar visibilidade à luta do povo.

 

É um dos artistas cujo trabalho é apresentado na exposição “A água é mãe da terra”, no Museu de Artes e Ofícios, na Praça Rui Barbosa, Centro de BH, até 4 de novembro. Ele falou ao EM em seu atelier na terra indígena sobre a importância da perpetuação da cultura na luta dos xakriabás. Leia abaixo os principais pontos da entrevista.

 

 

Como a retomada dos trabalhos com cerâmica ajudou na educação de jovens indígenas?

 

Atuei por mais de 20 anos como professor nessa área de artes e práticas tradicionais e um dos trabalhos que eu tenho feito é retomar as práticas com a cerâmica. Conversando com os mais velhos e desenvolvendo oficinas com as crianças para tentar trazer de volta essa prática que, no passado, era bastante presente. A cerâmica circulava muito nas casas das pessoas, o pote, a panela, esses objetos que com o tempo e com essas violências todas que aconteceram no nosso território foram se perdendo. A gente foi se interessando mais para esses objetos industrializados de plástico e alumínio que provocam muito prejuízo também o meio ambiente.

 

Esse também é uma forma de gerar renda. Eu já participei de algumas exposições e feiras fora também do município. Já fiz algumas viagens para outros estados, inclusive fui para Europa em 2022 para participar de um workshop, fiz uma exposição online na Turquia. Agora mesmo enviei umas peças pra bienal de arte da América Latina que vai acontecer na China. Então assim, é uma prática que estava adormecida e hoje voltou com força.

 

 

O ensino de práticas tradicionais pode ser uma alternativa para gerar renda dentro da Terra Indígena? Qual o impacto de seu trabalho nesse sentido?

 

Esse meu trabalho com a cerâmica tem muito a ver com a relação que a gente tem com os animais, com a terra e com a própria água. Quando pensei em fazer a moringa, pensei muito nessa coisa assim de que ela é utilizada para armazenar água e, para nós, a água é um grande problema. Nosso cerrado é meio que uma grande esponja de absorver a água, mas essa água, com essa questão da falta de chuva ou o próprio desmatamento que tem aumentado, secou. Nem essa esponja ela tem alimentado.

 

Essa prática da cerâmica tem sido uma boa possibilidade de geração de renda. Aqui, muitos dos jovens vão para fora do território cortar cana, trabalhar em outras áreas como a construção civil ou colheita de café. Existem pessoas que não voltam mais e tem pessoas que voltam já com problemas, sejam eles relacionados a drogas ou a religiões que muitas vezes proíbe de participar das práticas tradicionais. Então, quando você tem uma possibilidade de gerar renda no território e permite que as pessoas fiquem sem precisar sair para longe seus familiares é uma alternativa mais interessante.

 

 

O senhor tem participado de exposições dentro e fora do país. Acredita que a divulgação da arte Xakriabá pode ser um instrumento para fortalecimento das lutas internas?

 

É bem essencial essa questão da gente tentar cada vez mais ter visibilidade, como uma forma mesmo de mostrar para as pessoas que a gente existe e estamos aqui. Que, apesar de tudo, a gente tem resistido. Essas discussões, por exemplo, de primeiro dizer que você não pertence mais e que não existem povos naquela região é uma estratégia também de depois dizer que você não tem mais direito ao território. E aí vem esses políticos com esse discurso e ele vai se espalhando. As pessoas vão achando que indígena tem que ter sempre uma certa característica única: olho esticadinho, cabelo lisinho, tem que estar nu tem que estar morando no meio da floresta. Se você estiver na cidade, fizer um curso, você já deixa de ser indígena. É um pensamento preconceituoso.

 

A nossa arte ajuda a contar a história do nosso povo. Por meio dela muita gente tem se aproximado da gente nem tentado saber mais da nossa realidade, conhecer mais da nossa história e ela passa a ser uma ferramenta importante de luta. As pessoas hoje não sabem, não conhecem muito a realidade dos povos. No Brasil existem mais de 300 povos indígenas, são povos diferentes, povos que estão vivendo processos diferentes de contato. Quando a gente vai para as feiras eu tenho encontrado muita gente e percebido que as pessoas têm uma falta de informação muito grande sobre os povos indígenas porque eles acham que são todos iguais. Eles não sabem que existem uma variedade grande de povos, que falam línguas diferentes, que tem um processo diferente de contato. Tem povos isolados, mas, como nós, há grupos com 400 anos de contato com não indígenas. E foi um contato muito violento, com chacinas, proibição de falar a língua, de realizar rituais tradicionais, casamentos forçados, estupros, invasão de territórios.

 

Muita gente acha que a gente deixou de ser indígena porque não atende àquela imagem muitas vezes generalizada. Eles acham que é o indígena tudo igual, que mora em casa de palha no meio da floresta, que vive como se ainda tivesse em 1500. A nossa arte tem ajudado a mostrar essa diversidade.

 

 

Como o ensino artístico reforça a noção de identidade entre os próprios xakriabás?

 

Eu tenho tentado, nessa minha prática pedagógica, fortalecer esse conhecimento ancestral, mostrar para os alunos a importância que isso tem para a nossa própria identidade. Se a gente for deixando as nossas práticas e aderindo a prática do colonizador, vai chegar uma época que a gente vai ser olhado pelos outros com um olhar muito mais preconceituoso, cada vez mais preconceituoso. Vão dizer que a gente não é mais indígena. Há esse discurso de dizer que as pessoas não pertencem mais a um povo para depois justificar que não tem mais direito a um território, por exemplo. Eu tenho tentado conscientizar eles para ir aos mais velhos, aprender as práticas deles. Por exemplo, conhecer uma medicina tradicional que vai te ajudar a curar de uma doença sem precisar muitas vezes de muitas vezes recorrer a remédios. Tenho tentado mostrar para eles que existem várias práticas ancestrais que são mais saudáveis do que as práticas que hoje a gente tem aderido.


FONTE: Estado de Minas

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