Rio e Bahia mostram fracasso de medidas contra o crime organizado dos últimos 20 anos
A chacina que provocou a morte de três médicos e deixou um em estado gravíssimo, na noite de quarta-feira, em uma avenida movimentada da orla do Rio de Janeiro, expôs de forma crua e violenta os desafios do poder público no enfrentamento do crime organizado. O ataque aconteceu um dia depois de o governo federal anunciar um plano de combate às quadrilhas que atuam, principalmente, na região metropolitana da capital fluminense e na Bahia, estado que ostenta os piores indicadores de violência extrema do país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública-2022.
A crise na segurança pública brasileira faz do Rio de Janeiro e da Bahia estados que sintetizam o fracasso das medidas de contenção do crime organizado nas últimas duas décadas, independentemente do viés ideológico do governo de plantão. No Rio, governos de centro e de direita são eleitos há anos com a promessa de confrontar pela força o poder paralelo do crime organizado, inicialmente dividido entre traficantes de drogas e milícias, mas, atualmente, sem uma linha definida entre esses dois grupos. A guerra, lá, avança pelo controle de territórios — comunidades de bairros de periferia e morros no coração da capital — em que, não raro, vê-se a aliança entre facções do tráfico com milicianos locais.
Na Bahia, governada desde 2006 por políticos ligados ao PT, dezenas de gangues comandadas por facções do Rio de Janeiro e de São Paulo se digladiam com grupos locais também em disputas de territórios. As muitas rodovias que cortam o estado são rotas do crime. Regiões portuárias, como Salvador e Ilhéus, também são estratégicas para as facções. A ação da polícia baiana, nesse enfrentamento, tem sido ainda mais violenta, com a clara opção pelo confronto armado. Só em setembro, 77 pessoas morreram em trocas de tiros entre polícia e bandidos, quase o dobro do registrado no mesmo mês do ano passado.
A Bahia registrou no ano passado 6,6 mil assassinatos, o que faz do estado o mais violento do país em números absolutos, seguido, justamente, do Rio de Janeiro, com 4,7 mil mortes violentas intencionais. Os dois estados também lideram, na mesma ordem, os números de mortes decorrente de intervenção policial (em serviço ou não), com 1.464 e 1.330 casos, respectivamente, em 2022.
“Objetivamente, independe de quem esteja no governo, tanto no Rio quanto na Bahia ou em São Paulo. O crime está no comando. No Rio, por exemplo, qualquer prefeito que assuma (o cargo) tem que negociar com a Liga das Escolas de Samba (Liesb), que está ligada ao jogo do bicho, ao narcotráfico, às milícias, isso independe de políticas públicas”, avalia o cientista político e especialista e segurança pública Antônio Flávio Testa.
Para o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, independentemente de o governo ser de direita ou de esquerda, “a receita para enfrentar esse problema da segurança pública tem sido uma só ao longo dos últimos quarenta anos”, em que se privilegiam as operações de rua e o enfrentamento armado, enquanto o crime organizado se modernizou e atua de forma transnacional com base em coordenação e comunicação digital.
“Governos de direita, de centro ou de esquerda ficam capturados por uma estrutura analógica, em que não há a dimensão das comunicações simultâneas, da troca de mensagens em tempo real. As estruturas de segurança pública foram desenhadas numa época em que as telecomunicações eram precárias, não havia internet para todos. Mas o crime se atualiza, se moderniza. O Estado segue de forma anacrônica e analógica enquanto o crime está em uma versão transnacional, digital e operando de forma superarticulada. O crime ainda não integra as ações, mas sabe coordenar”, analisa Lima.
O presidente do fórum faz questão de reforçar a tese de que “segurança não é apenas ir ao enfrentamento, mas essa acaba sendo a única coisa que sobra para os governantes”. Para ele, o país não consegue escapar dessa lógica, que ele classifica como o “feijão com arroz da polícia”.
Lima também critica a retórica governamental, em que “as palavras mágicas” — como integração, inteligência, tecnologia e combate ao tráfico de armas — voltam a aparecer nos discursos no momento da crise. “Mas a gente percebe que muito pouco mudou em relação à forma da polícia atuar.”
Para ele, o caso dos médicos assassinados no Rio é emblemático. “Nas redes sociais há muitos relatos de que é comum ver milicianos pela cidade e os traficantes frequentam os quiosques da praia. Cadê polícia de investigação, a Polícia Civil, para prender essas pessoas sem precisar entrar nas comunidades com o caveirão (carro blindado) e enfrentá-las quando estão todas juntas, armadas, com fuzil na mão?”, questiona Lima.
“Hipocrisia”
O pacote de ações anunciado pelo ministro Flávio Dino, na semana passada, mistura, para o professor Antônio Flávio Testa, medidas boas com outras ineficientes, como a promessa de envio de 300 policiais da Força Nacional ao Rio de Janeiro. “O envio da Força Nacional é de uma hipocrisia muito grande. O que esses 300 agentes podem fazer? O custo econômico é altíssimo e a efetividade, simbólica. Como esses agentes da Força Nacional vão invadir o Complexo da Maré, vão subir o (Morro do) Alemão? O Brasil não tem interesse em combater o crime organizado, que está tomando conta de boa parcela do próprio Estado”, critica o professor.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), tem uma visão semelhante sobre o problema. Na semana passada, depois de receber o secretário executivo do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Capelli, no Rio, ele reafirmou que essa “não é uma briga de traficantes e milicianos”.
“É uma verdadeira máfia, que tem verdadeiramente entrado nas instituições, nos poderes, no comércio, nos serviços, inclusive no sistema financeiro nacional”, alertou o governador.
FONTE: Estado de Minas