Santos Dumont, 150 anos: as aventuras (e desventuras) do ‘pai da aviação’
Quando criança, a brincadeira favorita de Alberto Santos Dumont era “Passarinho voa?”. Numa roda de amigos, alguém pergunta: “Passarinho voa?”, e todos respondem: “Sim!”. E o jogo continua: “Abelha voa?”, “Galinha voa?”, e assim por diante.
Lá pelas tantas, para confundir, alguém indaga: “Cachorro voa?”. Se alguém erra a resposta, paga uma prenda. Certo dia, ao ouvir “Homem voa?”, Santos Dumont cravou: “Sim!”, para espanto de todos. Logo, sob protestos e vaias, quiseram que ele oferecesse a palma da mão em sacrifício para levar uns tapas dos amigos.
Diante da zombaria do grupo, provocou: “Nunca leram Júlio Verne?”, quis saber o leitor precoce de clássicos da literatura universal, como Cinco Semanas num Balão, Viagem ao Centro da Terra e Vinte Mil Léguas Submarinas.
Quando completou 18 anos, o futuro “pai da aviação” trocou São Paulo por Paris. Na capital francesa, sonhava voar como os pássaros. Para realizar seu sonho, estudou, entre outras disciplinas, física, eletricidade e mecânica, e construiu, em pouco mais de dez anos, 22 máquinas voadoras, como balões, dirigíveis e aeroplanos.
Ao sabor dos ventos
Em 1898, ele deu asas à primeira de suas invenções: Brasil, um balão inflado a hidrogênio, feito de seda japonesa e com seis metros de diâmetro. No dia 4 de julho de 1898, até ganhou altitude, mas não voou. Motivo: falta de vento.
Seu segundo balão, batizado de América, já podia transportar alguns passageiros. Ganhou o primeiro lugar em uma competição do Aeroclube da França. Ao contrário do modelo anterior, permaneceu no ar por quase 24 horas.
“Até a virada do século 20, o balonismo era o único meio de transporte aéreo que existia. O problema é que, dentro de um balão, você só controla a altitude”, explica o cineasta Fernando Acquarone, diretor da minissérie Santos Dumont, da HBO.
“Foi o primeiro homem a conseguir voar em qualquer direção, sem ficar à mercê dos ventos. Aos 28 anos, ele conseguiu realizar um dos desejos mais antigos da humanidade”.
Desventuras em série
Ainda em 1898, Santos Dumont construiu seu primeiro dirigível – modelo que, como o nome já diz, pode ser dirigido ou controlado. Caiu no segundo voo. Não desistiu e deu vida ao dirigível nº 2. Caiu na primeira tentativa.
No ano seguinte, criou o de nº 3. A cada novo invento, dava um número diferente. E realizava pequenos ajustes.
À época, cansado de encher o balão de hidrogênio toda vez que precisava testar seu dirigível, criou o primeiro hangar – mais do que um galpão para abrigar suas geringonças infladas, o local funcionava como oficina mecânica.
Com o dirigível de nº 5, chegou a contornar a Torre Eiffel, mas, no dia 8 de agosto de 1901, se chocou contra o Hotel Trocadero e ficou dependurado em seu cesto de vime a 20 metros de altura. Foi salvo pelos bombeiros.
Com o dirigível de nº 6, tentou atravessar o Mediterrâneo, mas não conseguiu. Por pouco, não morreu afogado.
“Ao longo de sua carreira, Santos Dumont sofreu incontáveis acidentes. O importante é que ele sabia como cair. Tinha uma agilidade incrível e quase não se machucava. Na pior das hipóteses, ficava atordoado e nada mais”, afirma o físico Henrique Lins de Barros, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e autor de Santos Dumont – O Homem Voa! (Contraponto).
'O bandeirante dos ares'
No dia 19 de outubro de 1901, realizou sua primeira façanha: decolou de Saint Cloud, nos arredores de Paris, deu a volta na Torre Eiffel (ou seja, contra e a favor do vento) e retornou ao ponto de partida em menos de 30 minutos.
Conquistou o Prêmio Deutsch e recebeu 100 mil francos. Como não precisava do dinheiro – era filho de um rico fazendeiro conhecido como “Rei do Café” –, doou o prêmio aos mecânicos de sua oficina e aos pobres de Paris.
Recebeu telegrama de congratulações de outro gênio inventivo: o norte-americano Thomas Edison (1847-1931). “Bandeirante dos ares!”, elogiou o “pai” da lâmpada elétrica.
E de Pedro, um amigo de infância: “Você se lembra, caro Alberto, do tempo em que brincávamos de “Passarinho voa?”. Você tinha razão em levantar o dedo, pois acaba de demonstrá-lo voando por cima da torre Eiffel”.
Quando não estava em seu hangar construindo novas aeronaves ou consertando as antigas, Santos Dumont gostava de se aventurar em voos noturnos, descer no meio de uma corrida de cavalos ou, então, deixar uma mulher, Aída de Acosta (1884-1962), pilotar, sozinha, seu dirigível. Reza a lenda que a socialite de origem cubana era uma paixão platônica do piloto brasileiro, que nunca se casou ou teve filhos.
“Santos Dumont tirava onda”, brinca o cineasta Estevão Ciavatta, de Mais Leve Que o Ar – A Infância de Alberto Santos Dumont (Matrix). “Em 1903, durante o aniversário da Queda da Bastilha, sobrevoou um desfile militar em plena Champs-Élysées. Se Paris era a capital do mundo, Santos Dumont era o homem mais famoso do mundo”.
'Um playboy sui generis'
Naquele ano, criou o dirigível de nº 9, que ganhou o apelido de Baladeuse. Seu volante foi construído com roda de bicicleta. Pequeno e fácil de manobrar, Santos Dumont usava o primeiro carro aéreo do mundo para passear.
“Santos Dumont tinha mesa reservada em qualquer restaurante de Paris. Amarrava o balão a uma árvore, descia por uma escada de corda e, terminado o jantar, voltava para casa. A cidade parava para vê-lo passar. Era um playboy sui generis”, define o jornalista e escritor Márcio Souza, autor de O Brasileiro Voador (Record).
Os inventos seguintes, de nº 10, 11 e 12, podem ser considerados protótipos de ônibus-voador (com capacidade para dez passageiros), hidroavião e helicóptero, respectivamente.
O de nº 13, construído em 1905, foi destruído durante uma tempestade.
Um inventor na ABL
Entre uma invenção e outra, Santos Dumont escreveu, em francês, o primeiro volume de sua autobiografia, Dans L’air (1904) – lançado no Brasil sob o título de Os Meus Balões (1938). Quatorze anos depois, publicou o segundo volume, O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos (1918).
Segundo ocupante da cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Letras (ABL), Santos Dumont foi eleito imortal em 4 de junho de 1931, para ocupar o lugar de Graça Aranha, mas não chegou a tomar posse.
Do outro lado do Atlântico, os irmãos Wilbur (1867-1912) e Orville Wright (1871-1948) também quebravam a cabeça para construir uma aeronave mais pesada que o ar. No dia 17 de dezembro de 1903, os dois levantaram voo, a bordo do aeroplano Flyer, na praia de Kitty Hawk, na Carolina do Norte.
“Quando os Wright convocaram a imprensa para provar que o aparelho deles voava, só conseguiram levantar voo com ajuda de uma catapulta”, observa o jornalista Fernando Jorge, de As Lutas, a Glória e o Martírio de Santos Dumont (Harper Collins). “É como se colocasse uma pedra em um bodoque, puxasse o elástico e a jogasse longe”.
'Ave de rapina'
Em 1906, Santos Dumont voltou a escrever seu nome na história da aviação ao criar o 14-Bis. Ao contrário dos modelos anteriores, o mais recente não era um dirigível, mas um aeroplano do tipo “canard” (“pato”, em francês), que tem o leme na parte da frente e as asas maiores na parte de trás.
Para construir a aeronave, em pouco mais de um mês, usou papel de seda, hastes de bambu, pedaços de madeira e algumas peças de metal, como um motor de lancha. O 14-Bis tinha 10 metros de comprimento, 4,81 de altura e 11,5 de envergadura. E pesava 240 quilos. Os franceses apelidaram-no de “Oiseau de proie” (“Ave de rapina”).
Com sua mais nova invenção, Santos Dumont fez dois voos memoráveis: no dia 23 de outubro, quando, a três metros do chão, percorreu 60 metros em sete segundos, e no dia 12 de novembro, quando, a seis metros de altura, percorreu uma distância três vezes maior, de 220 metros, ambos no Campo de Bagatelle, em Paris.
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Entre os milhares de curiosos que assistiram ao voo do dia 12, membros da Federação Aeronáutica Internacional (FAI). É, portanto, o primeiro voo registrado e reconhecido da história da aviação.
Santos Dumont não parou ali. Até 1909, construiu mais oito modelos. Aos quatro últimos, deu o nome de Demoiselle (“donzela”), o primeiro ultraleve da história.
O sucessor do 14-Bis chegou a alcançar a velocidade de 96 quilômetros por hora. No dia 8 de abril de 1909, percorreu 2,5 mil metros a 20 metros de altura.
Santos Dumont não patenteou suas invenções. Colocou à disposição de quem quisesse reproduzi-las. Por essa razão, Demoiselle é considerada a primeira aeronave a ser fabricada em série. Foram construídos mais de 40 exemplares.
Em 1910, por recomendação médica, se aposentou como piloto. Desconfia-se que sofria de esclerose múltipla.
Um refúgio na serra
Em 1918, escolheu a cidade de Petrópolis, na serra fluminense, como residência de verão. Construiu, em apenas três meses, uma casa apelidada de “Encantada”.
Alguns dos móveis da casa, projetada pelo arquiteto Eduardo Pederneiras, foram pensados para exercer múltiplas funções. A mesa, por exemplo. Durante o dia, era escrivaninha. À noite, virava uma cama.
Os degraus das escadas são recortados no formato de raquete para facilitar a subida e evitar quedas. No banheiro, outra de suas incontáveis invenções: o chuveiro de água quente.
A mais famosa delas, com exceção do 14-Bis, é o relógio de pulso. Segundo biógrafos, teria pedido a um amigo, o joalheiro Louis Cartier (1875-1942), que fizesse um. Criou, então, um quadrado com pulseira de couro. Com o relógio de bolso, Santos Dumont não conseguia pilotar e cronometrar o tempo de voo ao mesmo tempo.
Cartier, aliás, não era o único amigo famoso de Santos Dumont. Volta e meia, o piloto brasileiro saía para jantar no Maxim’s, seu restaurante favorito, com a princesa Isabel (1846-1921), que assinou a Lei Áurea, ou com o engenheiro Gustave Eiffel (1832-1923), que projetou a Torre Eiffel.
“São, ao todo, mais de 200 itens, entre cartas, moedas e livros, boa parte deles doados por familiares e historiadores. Mas, a maior atração da casa é, sem dúvida, o chapéu”, garante Cláudio Gomide, gerente do Museu Casa de Santos Dumont, em Petrópolis, que reabre ao público no próximo dia 20 e recebe uma média de 10 mil visitas por mês.
Segundo os biógrafos de Santos Dumont, ele era baixinho – algo em torno de 1,52 metro de altura – e pesava 50 quilos. Para disfarçar sua baixa estatura, usava um chapéu panamá, terno de gola alta e sapatos de sola grossa.
Tanto a fazenda Cabangu, na pequena Palmira (MG), onde nasceu, em 20 de julho de 1873, quanto a Encantada, sua residência de verão em Petrópolis, viraram museus. Hoje, sua cidade natal se chama Santos Dumont.
'Invenção coletiva'
Sobre a polêmica envolvendo a “paternidade” da aviação, Santos Dumont escreveu, em O Homem Mecânico: “Os partidários dos irmãos Wright afirmam que foram eles que voaram na América do Norte de 1903 a 1908. Esses voos pareciam ter ocorrido perto de Dayton, num campo ao longo de uma linha de bonde”. Escrito em 1929, o manuscrito O Homem Mecânico só foi descoberto 75 anos depois por um sobrinho-neto.
“Não posso deixar de ficar profundamente estupefato por essa reivindicação ridícula”, prossegue Santos Dumont. “É inexplicável que os irmãos Wright pudessem ter realizado inúmeros voos durante três anos e meio sem terem sido observados por um único jornalista da perspicaz imprensa norte-americana que tivesse se dado o trabalho de assisti-los e de produzir a melhor reportagem da época”, conclui.
Na opinião do jornalista Paul Hoffman, autor de Asas da Loucura (Record), a reivindicação não é assim tão ridícula. “Existe um amplo consenso entre os pesquisadores, exceto por alguns poucos brasileiros, de que os Irmãos Wright inventaram o primeiro avião a motor controlável e bem-sucedido do mundo. Embora houvesse testemunhas de seus primeiros voos em 1903, eles não estavam atrás de publicidade e, a princípio, voaram na obscuridade”.
“Santos Dumont só conseguiu voar três anos depois e, quando conseguiu, o fez de maneira chamativa e em busca de publicidade. Por essa razão, atraiu legiões de fãs e ganhou as manchetes dos jornais”.
Autor de Conexão Wright – Santos Dumont: A Verdadeira História da Invenção do Avião (Record), Salvador Nogueira propõe um meio-termo. “O avião não tem um único pai. Foi uma invenção coletiva”, defende o jornalista.
“Se você olhar para os primeiros Flyers ou para o 14-Bis, eram máquinas bem diferentes do que hoje reconhecemos como avião. Foi uma combinação de inovações produzidas por aqueles pioneiros que deu à luz o avião moderno”.
Guerra entre irmãos
No dia 23 de julho de 1932, Santos Dumont foi encontrado morto, enforcado com duas gravatas, no banheiro de seu quarto no Hotel de La Plage, no Guarujá (SP). Até hoje, não se sabe ao certo o que teria levado o “pai da aviação” a cometer suicídio. Uma das hipóteses é a de que ele teria entrado em depressão ao ver seu principal invento usado como máquina de guerra na Revolução Constitucionalista de 1932.
“Nunca pensei que fosse causar derramamento de sangue entre irmãos”, teria dito ao ascensorista do hotel, Olympio Peres Munhoz, minutos antes de sair do elevador. “O que eu fiz?”. Por mais de 20 anos, acreditou-se que Santos Dumont teria morrido de um “colapso cardíaco”, como atestava sua certidão de óbito.
Seu coração foi guardado em um pequeno cofre de ouro e no formato de esfera celeste no Museu Aeroespacial, no Campo dos Afonsos, e seu corpo sepultado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, ambos no Rio de Janeiro.
Uma curiosidade: foi o próprio Santos Dumont quem mandou erguer o jazigo, ornamentado pela estátua em bronze de Ícaro, ao lado dos pais, Henrique e Francisca. “Ficou muito bonito”, escreveu ao sobrinho Alberto, em 19 de outubro de 1923. “Não podia ser mais a meu gosto”.
Entre outras homenagens, Santos Dumont virou nome de rua, praça e aeroporto. Em 1973, no centenário de seu nascimento, a União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês) deu o nome do inventor brasileiro a uma cratera lunar de 8,8 km de diâmetro, que fica próxima ao local de pouso da missão Apollo 15.
FONTE: Estado de Minas