Tragédia expõe cenário de falhas e irregularidades
Fique por dentro de todas as notícias pelo nosso grupo do WhatsApp!
Mateus Parreiras e Isabela Bernardes
Possíveis problemas mecânicos, veículo sem registro, licença para equipamento de controle vencida e uma estrada de alto risco. Falhas e irregularidades compõem o pano de fundo e podem ter sido o gatilho do desastre rodoviário da madrugada de domingo, no Km 525,4 da BR-381, entre Igarapé e Brumadinho, na Grande BH, que comoveu o país. Uma fiscalização insuficiente complica o quadro, aponta o diretor científico da Associação Mineira de Medicina do Tráfego (Ammetra), Alysson Coimbra. Ontem, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) instaurou um inquérito para investigar as causas e circunstâncias do desastre.
O veículo levava torcedores do Corinthians de volta para São Paulo, após acompanharem o empate contra o Cruzeiro por 1 a 1, e tombou, por volta das 3h, depois de bater em barranco, com 43 pessoas a bordo. Sete pessoas morreram e 36 ficaram feridas. Segundo a Polícia Civil, os corpos passaram por exames de necropsia, foram identificados e liberados aos familiares pelo Posto Médico Legal. Nove pessoas seguiam internadas ontem em hospitais da Grande BH, entre elas o motorista, de 39 anos, levado para unidade de Betim, em estado grave.
A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) confirmou que o veículo não tinha registro nem autorização para fazer o transporte de passageiros entre estados. Além disso, o tacógrafo, aparelho de uso obrigatório para veículos que transportem mais de 10 passageiros, estava vencido. De acordo com o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), o certificado foi emitido pela última vez em outubro de 2018 e tinha validade até 2020.
O tacógrafo é essencial para checar como estava o ônibus durante o trajeto e funciona como a “caixa-preta” de um avião. Sempre que o veículo está ativo, o tacógrafo registra as informações sobre velocidade e condução, entre outras. Com ele, também é possível ver se o ônibus fez pausas para o condutor descansar, velocidade média e tempo que percorreu o trajeto.
No caso do ônibus envolvido no desastre com os torcedores, a licença estava vencida desde outubro de 2020. Ela foi emitida em 24 de outubro de 2018. O documento é concedido pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Imentro), que checa apenas a condição do tacógrafo. A fiscalização e regulamentação do veículo, por sua vez, são de competência dos órgãos de trânsito.
Segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por não ter as licenças necessárias para a viagem, o veículo estava em situação irregular. “A ANTT esclarece que fornecerá, quando solicitadas, todas as informações necessárias às autoridades de segurança pública para apoiar as investigações. Além disso, informa que a Arteris Fernão Dias, administradora do trecho da rodovia concedida, prestou todos os socorros iniciais”, disse a agência em nota.
“DESMONTE” Para o diretor científico da Ammetra, Alysson Coimbra, uma fiscalização mais incisiva e frequente poderia ter evitado a tragédia. “A fiscalização vai exigir a apresentação de documentos, atualização da empresa e outras contrapartidas. Uma vez que esse certificado não é emitido, qualquer deslocamento interestadual é considerado transporte ilegal, que chamamos de transporte clandestino.”
Segundo Coimbra, há quase três anos houve uma alteração significativa na capacidade de fiscalização nas rodovias pela ANTT. “É como se fosse um desmonte da fiscalização nas estradas”, afirma. A ANTT informou que foram realizadas, em 2022, 430 fiscalizações em Minas Gerais, com foco em fretamento e em transporte clandestino. Em 2023, até 31 de julho, foram feitas208 ações do tipo.
Só em Minas, em 2022, foram identificados 927 veículos fretados que apresentaram irregularidades ou estavam operando clandestinamente. Desses, 383 estavam operando de forma clandestina. Já em 2023, até 31 de julho, foram 308, sendo 210 clandestinos.
O especialista acredita que o ônibus envolvido no acidente estava circulando de forma irregular pela certeza da impunidade. “O problema não é não fazer o registro na ANTT. Ele não faz o registro porque sabe que não vai ter fiscalização disso. É um problema duplo. Estando ilegal, com documentação irregular, a empresa não vai nem poder ser inspecionada, para ter a viagem negada. E com todas as condições precárias vai circular sem ser fiscalizada.”
A competência para fiscalizar o transporte interestadual de passageiros é da ANTT. “Em todo posto de pesagem é obrigatória a entrada de veículos de grande porte, incluindo os ônibus. Além do peso, tem essa fiscalização. O fiscal pede a guia de liberação da viagem. Se o motorista não apresentar, o veículo fica retido no local”, explica Coimbra. Ele ressalta que não houve uma mudança em lei. “Houve uma alteração interna da agência que prejudicou as operações de fiscalização que eram rotina.”
No caso da Polícia Rodoviária Federal (PRF), o porta-voz da corporação em Minas, Aristides Júnior, explica a competência é de fiscalização do veículo em relação ao estabelecido pelo Código Brasileiro de Trânsito, ou seja, verificar os equipamentos obrigatórios do veículo e a situação da documentação do motorista, por exemplo.
TRECHO PERIGOSO O local onde o ônibus tombou é uma forte descida, com curvas fechadas. Conhecido como Alto da Conquista o trecho é um dos mais perigosos da Rodovia Fernão Dias por se tratar de um local sinuoso e de serras, com curvas fechadas e declives fortes, apesar de duplicado, dotado de separação de pistas por barreira de concreto e contar com acostamento. Sobreviventes contaram que o veículo perdeu o freio e, para não invadir a contramão da pista, o motorista jogou o ônibus em um barranco. Vários dos ocupantes estavam sem cinto no momento da batida. Devido a isso, as lesões se agravaram. Alguns corpos estavam debaixo do veículo quando foram retirados.
O trecho é considerado o segundo mais mortal da BR-381, segundo dados atualizados da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Conforme a PRF, no Km 526 da rodovia Fernão Dias, 10 pessoas morreram e 21 ficaram feridas, três delas gravemente, entre 2020 e 2023. Ao todo, foram oito acidentes no período, envolvendo 11 veículos e 18 pessoas, ainda segundo a PRF. O trecho com mais mortes nesse período, entretanto, fica em Ravena, um distrito de Sabará marcado pela dor justamente por estar no caminho da parte da BR-381 conhecida como "Rodovia da Morte", apelido dado à estrada pela sua alta letalidade. Ali, no Km 434, foram 11 mortes e 11 feridos, sendo seis com gravidade, em cinco acidentes, com 10 veículos e 31 pessoas envolvidas.
SOBREVIVENTES No caso do desastre de domingo, de acordo com a Prefeitura de Betim, 17 das 27 vítimas foram encaminhadas para o Hospital Público Regional da cidade, sete para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Norte e uma para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Teresópolis. Das sete vítimas internadas na UPA Norte, seis receberam alta. Uma foi transferida ao Hospital Regional para a realização de exames complementares. Todos os internados seguiam recebendo os devidos cuidados médicos. As informações detalhadas sobre o estado de saúde dos pacientes estão sendo repassadas diretamente aos familiares e/ou responsáveis.
Em Contagem, duas vítimas receberam atendimento em um hospital da cidade e foram prontamente liberadas. Uma vítima em estado grave foi encaminhada para o Hospital João XXIII, em BH. Ele está internado e o estado de saúde não foi atualizado. O velório de cinco vítimas foi realizado na tarde de ontem em Pindamonhangaba, em São Paulo.
FONTE: Estado de Minas