‘Meu corpo não está nos livros de biologia’, diz Urias, cantora trans que se apresenta no The Town

28 ago 2023
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Ela canta no festiva no sábado (2), com repertório do álbum ‘Her Mind’. 'Quero mostrar uma música eletrônica que vão ouvir na balada, mas que tenham elementos de música brasileira.' Urias apresenta novo disco, 'Her mind', no The Town

João Arraes/Divulgação

Depois que lançou "Fúria", em 2021, Urias ficou com um pensamento rondando sua cabeça. "Com o tempo, só me era perguntado sobre o meu corpo. O meu corpo quanto corpo político, corpo social, sempre trazendo e resumindo a minha existência ao meu corpo", conta a cantora ao g1, em alusão ao fato de ser uma cantora transexual. "Eu queria falar de outras coisas, mas como incitar as pessoas a me perguntarem sobre outras coisas?"

Por acaso, ela encontrou no TikTok comentários sobre um estudo da Universidade de Liège, na Bélgica, que comparou o cérebro de pré-adolescentes trans e cis. "Descobriram semelhanças que achavam que não existiam e diferenças que achavam que não existiam. Comecei a pirar nisso, de querer falar sobre a mente."

O estudo foi a primeira inspiração para o seu mais recente disco "Her Mind", com o qual ela se prepara para abrir o palco Factory do festival The Town, no dia 2 de setembro.

Capa do álbum 'Her mind', de Urias

João Arraes

"Her Mind", que foi lançado em duas etapas, traz faixas eletrônicas mais densas com a mistura de dubstep, trance e ritmos latinos. "Queria apresentar um trabalho que fosse uma possibilidade de música eletrônica brasileira para o mundo", diz. "Quero mostrar uma música eletrônica que as pessoas vão poder ouvir na balada e que tenha elementos da música brasileira, como a cuíca, tem berimbau, elementos do funk, mas continua sendo eletrônica."

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Em entrevista ao g1, ela falou sobre a ideia do disco e sobre o show no The Town.

g1 - As informações sobre o seu trabalho 'Her mind' fazem referência a um estudo que comprara pessoas trans e cis da Universidade de Liège, na Bélgica, que você encontrou. Como foi o contato com esse estudo e como traduzi-lo para o conceito do álbum?

Urias - Eu tinha lançado meu álbum, "Fúria". Com o tempo, com o decorrer das coisas, só me era perguntado sobre o meu corpo. Sobre o meu corpo político, corpo social, sempre trazendo e resumindo a minha existência ao meu corpo, ao meu tipo de corpo.

Fiquei muito com isso na minha cabeça. Pô, quero falar de outras coisas, mas como incitar as pessoas a me perguntarem de outras coisas? Então, pensei que queria falar da minha mente.

Um dia, vi no TikTok um estudo de uma mulher, eu vi o vídeo da mulher, e fui clicando nos links e achei o estudo da Bélgica, que comparava o cérebro - tomografias cerebrais e radiografias e todos os exames cerebrais que uma universidade europeia pode ter acesso-, de uma pessoa trans, pré-adolescente, a maioria antes da harmonização, com o de um pré-adolescente cis. Descobriram semelhanças que não sabiam que existiam e diferenças que não sabiam que existiam.

Comecei a pirar nisso, de falar sobre a mente. Queria muito alguma coisa, algum estudo, que me provasse que eu faço parte da natureza.

Era essa naturalização que eu queria: um estudo sobre pessoas como eu, igual existem estudos sobre os corpos cis. Os corpos de vocês estão no livro de biologia, o meu não está, entendeu?

Então, eu fui atrás dessa naturalização, desse lugar de existência do meu corpo dentro da natureza, dentro do ciclo da vida, dentro da morte/vida, do nascer e pôr do sol. Fora dessa parte do social. Queria me naturalizar essa parte de mim como parte da natureza. O meu corpo também faz parte da natureza.

g1 - Seu novo disco tem músicas eletrônicas calcadas no dubstep e no trance e parecem mais densas. Por que optou por essa sonoridade?

Urias - Meu primeiro álbum tem muito de música eletrônica, mas eu fui muito numa coisa da rima. Eu queria agora apresentar um trabalho que fosse uma possibilidade de música eletrônica brasileira para o mundo. Aí, decidi fazer o trabalho todo em outras línguas [no disco, além de português, Urias canta em inglês, espanhol e cita frases em francês]. Tem vários artistas enormes brasileiros que estão abrindo para a gente lá fora, então, quis apostar também.

Eu quero mostrar uma música eletrônica que as pessoas vão ouvir na balada, mas que tenham elementos de música brasileira. Tem cuíca, tem berimbau, elementos do funk, mas que continua ainda sendo eletrônica. Quando eles escutarem, vão perguntar 'de onde é isso? É do Brasil'. Essa foi a minha direção de sonoridade.

Não posso deixar de acrescentar aqui toda a bagagem do Maffalda [que assina a produção do álbum]. Ele foi de extrema e essencial importância. Ele é um cara que tem a cabeça muito no futuro, trouxe muita coisa, muita mistura que eu achei que não ia dar certo. Ele quem fez a sugestão de fechar o álbum com 'Her mind'. A música tem um ar de despedida, mas também o ar de apresentar algo novo. Meio que a conclusão de fazer parte da natureza.

E aí, eu incluo essa outra normalização que é da religião. O meu primeiro álbum é o corpo social, vou para o corpo biológico e termino em uma proposta por uma inclusão social. Ele foi essencial, porque, Nossa Senhora, acho o Maffalda um gênio.

g1 - Em 2021, o g1 conversou com você sobre seu primeiro trabalho e falou também com o Gorky, seu produtor (ouça no podcast g1 Ouviu abaixo). Ele comentou que a sua música não era de fácil assimilação. Não é uma música que as pessoas digerem de bate e pronto. Por que apostar nisso e não em faixas mais pop?

Urias - É difícil digerir, né? Olha, o meu grande desafio quando eu comecei minha carreira, eu, sozinha no meu quarto, pensando… Acho que eu nunca falei isso pra ninguém, de qual era a minha meta, até porque nem eu sabia o que ia acontecer, e vai que não dá certo. Eu sempre pensava que tinha que criar um espaço para mim no mercado, no espaço que fosse para mim.

Preciso pisar em um espaço que seja meu, que eu possa fazer as coisas e as pessoas vão ouvir e vão lembrar, vão falar 'isso é muito aquilo lá que aquela gata faz'. Foi muito nesse lugar. Não queria fazer o que todo mundo estava fazendo.

Eu não sei, interpreto no meu ponto de vista, mas, às vezes, a galera, o público em geral que consome pop, às vezes, eles querem sempre estar ouvindo a mesma coisa. Às vezes, me mandam mensagens falando 'por que você não faz isso para alcançar um público mais mainstream?'. Eu fico pensando, mas eu fiz para me destacar do meio, para um dia alguém falar 'ela fez'. É se destacar, para as pessoas ouvirem algo diferente também.

g1 - Significa que você não cogita viralizar coreografias no TikTok, por exemplo?

Urias - Não, não. Não é que estaria fora de cogitação. Mas esse seu exemplo de coreografia no TikTok, por exemplo, teria que ter sentido com o todo, sabe? A gente não sabe o que vai hitar no TikTok.

A Lady Gaga lançou uma música 13 anos atrás, que hitou no TikTok no ano passado. A gente nunca vai saber, não tem uma regra. Eu prefiro continuar sendo honesta comigo, fazendo o que eu quero. Se eu achar que cabe uma coreografia no TikTok… Mas a gente sempre faz a coreografia e grava para TikTok, mas não é uma coreografia pensada para o TikTok.

g1 - Você vai estrear o seu álbum no The Town, qual é o plano para esta apresentação?

Urias - A gente pensou em um palco para ser de dia. Um palco que a gente consiga fazer acontecer um show bonito. Por ser de dia, a gente não tem o controle de luz. A gente vai trazer cenografia, vou apresentar essa nova fase dessa era que vai concluir esteticamente aquilo que a gente falou antes, de fazer parte dessa natureza.

Pabllo Vittar e Urias em apresentação no dia de 'aquecimento' do Lollapalooza, em 2022

Celso Tavares/g1

E com certeza vai ter dançarinos, muitos dançarinos. Estou ensaiando todo o dia, mulher, seis horas por dia. Estou cansada, muito cansada.

Estou vivendo para esse festival. Estou ensaiando para o show também. Mas toda a minha equipe está muito focada neste festival, porque é de grande proporção que vai me apresentar a muita gente nova.

g1 - Qual a importância do festival para você?

Urias - Profissional, e até pessoalmente falando, é de uma importância enriquecedora porque estamos montando um show novo, ensaiando mais coisas. Essa rotina de ensaio… Tudo. Não é que acabou o The Town e apagou da minha memória, isso tudo me constrói para ser melhor. Está sendo muito essa mistura dessa coisa de 'quero mostrar mais', mas estou nessa fase de estudo, estudando dança, estudando canto. É um acréscimo muito além do que só a carreira.

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FONTE: G1 Globo


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